sábado, 31 de maio de 2008

Cecília Meireles

Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

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Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

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Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

- não sei, não sei.

Não sei se fico ou passo.

.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

- mais nada.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

A Romancista

Grita ao mundo que és infeliz,

Grita ao mundo que sofre de todos os males existentes! - Inexistentes!

E clama pela morte! - Palavra poética.

Dá a teu livro a capa mais bonita de todas,

Será o mais belo preenchedor de estantes!

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Todos lembrarão...

De teus cabelos negros e do sorriso largo

Que dera, com o tom mais forte de vermelho nos lábios!

Deixa teu nome e vai-te sem deformar o belo corpo,

Para que eles te olhem, pálida, com as flores perfumada.

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E derramarão lágrimas por tua morte gloriosa!

Por tua vida lamentável e pela doçura dos teus gestos!

Não pensarão na verossimilhança do teu ser,

Por isso, foge em paz, donzela.

Tira tuas luvas e começa a correr!

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Com os olhos encantados, não me darão ouvidos,

Por que não desistes do papel de heroína?

Logo outros também abrirão os olhos

E não haverá dragões a perseguir-te.

Carruagens de abóbora não virão buscá-la!

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Ousastes tentar roubar de mim o único sonho!

Agora grita! Grita diante a ameaça que represento!

E cala-te antes de repetir que desejas voar,

Cala-te! Pois tremes ante a vertigem!

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Quer sentir-se pobre, criança?

Então vá! Sabendo que não se busca alegria fora da vida!

Pateticamente esconde o grande vazio de dentro de ti sob a terra,

Sabendo que nem a lama te aliviará o peso!

Corta os pulsos e mostra pra todos!

Escolhe o caminho mais fácil,

Sabendo o quanto tínhamos em comum.

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Mas saiba também que enquanto os vermes comerem sua carne putrefata

Queimarei as páginas em branco que deixar,

Não sobrará nada de ti nesse mundo

A não ser a idolatrada imagem da virgem que criastes como máscara!

E mesmo a sete palmos do chão poderás ouvir-me a dizer:

"Beijas a sola do meu salto alto, princesa!"

.

Quando esse momento chegar talvez minha risada seja indiscreta.

.

...

.

Não tanto quanto agora.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Bipolar

Olhou no fundo de meus olhos,

Como nunca haviam feito outrora.

Em seu sorriso sádico, meu olhar, fixo.

Não podia piscar, nem me mover.

Agarrou meu braço com força

E derrubou-me ao chão.

Quis chorar, mas era mais importante mostrar-me forte.

Quis gritar, mas não podia deixar que ninguém ouvisse...

Debati-me. Era inútil!

Segurava-me, pequena diante de si, sem esforço.

"Eu posso respirar o seu desespero", sussurou em meu ouvido.

Seus lábios quentes em meu pescoço...

Suas mãos tocando cada canto da minha pele.

A cada tentativa de fuga, uma nova ameaça,

Um corte mais profundo da lâmina que segurava.

Em verdade, quis ceder. Não era como desistir...

Aceitei a lama daquele ser, meu desejo primitivo.

Deixei que penetrasse em mim. Qual dor pesaria mais?

"A intensidade do seu abraço

Não te deixa esconder sua obcessão.

Ama-me!"

Uma vez tomada completamente, não havia volta...

Com sua expressão triunfante, permanecerá dentro de mim...

Você, que invade e domina quando as luzes se apagam,

Você, só você, que desperta meu outro "eu",

Tem o poder de calar minha insegurança.

Meu incansável, incessante

Ego.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Navegar é preciso

Subi a bordo com meu quase-sorriso costumeiro,

Em nome dos que ficavam.

“Felizes são aqueles que conseguiram suas passagens!”

E como o eram quando embarcaram!

Porém não me agradavam as pessoas daquele navio

Alguns tinham os olhos vendados,

Outros tinham os olhos cerrados, todos incapazes de ouvir.

Poucos, como eu, calavam-se.

Passei meus dias observando o quão belo era o mar em volta,

Tão profundo, tão incerto,

Tão diferente daquela ilha para que íamos, todos

Inertes, sem afogar...

Mas vejo, ouço e penso! Grito! Torno-me quem sempre fui,

Ainda que pareça ingrato,

Agora há confiança. Sorrio, sabendo que quero me arriscar.

“Talvez eu só queira ser...”

Jogo-me sem hesitar.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Carlos Drummond de Andrade

Procura da Poesia

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes.

Nem me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem,

rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques, não indagues.

Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões,

vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo,

é algo imprestável. Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas,

antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono

rolam num rio difícil e se transformam em

desprezo.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Um pequeno conto...

É outono.

Ando rapidamente, movida pela vontade de chegar logo à minha casa.

Mais um passo, mais uma folha caída. O vento forte que sopra arranha minha pele e deixa minhas bochechas vermelhas, contrastando com as pontas de meus dedos, pálidas.

Chego a uma descida.

Vejo um menino passar, apressado como eu, e percebo que ele tenta alcançar a mãe, logo à sua frente. A senhora briga com o pequenino, cabisbaixo.

- Que besteira! - ela grita, rudemente entregando-lhe uma flor. – Perda de tempo!

E seguem na direção oposta.

"Crianças aprontam mesmo", penso, mesmo sem entender, e solto uma risadinha leve, recordando coisas da minha infância.

No fim da rua, me deparo com uma escola primária. "Feliz Dia das Mães", diz o cartaz pregado na porta. E, sob ele, moças levam rosas e crianças pelas mãos.

Continuo. Agora, mais devagar. Tremo.

Está frio. Muito frio.